quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Mãe, o cacete! de Ivana Arruda Leite


   Mãe é uma cruz na minha vida. Nunca gostei da minha e duvido que as pessoas gostem tanto da sua quanto dizem. Quando eu estudava no colégio das freiras, elas falavam que era até pecado desgostar da mãe desse jeito. Mãe é coisa sagrada. Que eu rezasse pra mãe de Jesus pra ver se ela me ajudava. Rezei porra nenhuma. Não gosto da mãe de ninguém, nem da mãe de Jesus. Mãe é sinônimo de atraso, degradação. Mãe deforma a cabeça da gente. O mundo seria outro sem mães. Deus que se virasse pra fazer as pessoas nascerem de outro jeito. Repolhos, bromélias. Os filhos seriam todos órfãos, órfãos e felizes. Ele não precisou de mãe pra criar a humanidade. A mãe veio muito depois, por castigo.
A minha dava cada beliscão, batia de chinelo, puxava orelha, dava tapa na cara, cascudo com o nó dos dedos. Isso é coisa que se faça a uma filha? A única que ela teve!
    Eu queria uma mãe de quadrinho, dessas que trocam os filhos com cuidado, dão beijo na testa e fazem o nenê nanar, contam histórias, seguram na mão pra atravessar a rua, cortam as unhas do filho (a única vez que a minha fez isso, quase me arrancou a ponta do dedo). Dizem que existe. Mas eu? Que ficasse cagada, mijada e com a cara cheia de ranho até a hora que ela bem entendesse. Tinha mil coisas pra fazer antes de me socorrer. Tive que aprender tudo sozinha: que tomada dá choque, que faca corta, que osso de frango engasga (eu mesma enfiei o dedo na garganta e tirei o osso de lá quando isso aconteceu), que mulher menstrua, que homem velho gosta de abusar de criança. Ela tinha um namorado bem velho. Era seu patrão na fábrica de arame. Eu tive a pior mãe do mundo.
    Quando saíamos juntas, ela me mandava correr:
    - Eu vou embora e te largo aí.
    Se eu chorava, ela me dava um safanão e me mandava calar a boca. Se eu gostava de um programa de televisão, ela mudava de canal. Se me via feliz, me mandava pro quarto.
    - Vai rir na cama.
    Minha mãe detestava me ver contente. Talvez por isso nunca me deu presente, nem no Natal nem no aniversário. Um dia me perguntou:
    - Que dia mesmo você nasceu?
    Dizia que não tinha dinheiro, mas pra ela não faltava nada: rouge, batom, pó de arroz, tinha de tudo na penteadeira dela. Até perfume francês. Na minha, só talco Gessy e uns toquinhos de batom que ela não usava mais.
    Quando eu ficava doente, me tacava um comprimido na garganta e apertava o nariz pro comprimido descer logo. Me esquecia na cama com termômetro no braço. Eu que adivinhasse a febre, quando ainda nem sabia ler.
    Nunca foi a minha escola, dizia que não tinha tempo a perder.
    Pouco se lhe dava saber onde eu estava.
    Na rua, as meninas diziam:
    - Tenho que ir embora, minha mãe tá me esperando, minha mãe vai ficar brava, a janta tá pronta.
    Eu só voltava pra casa porque não tinha mais ninguém pra brincar. Se eu sumisse ou morresse, acho que ela nem ia perceber.
    Minha mãe era bonita, uma morena vaidosa, gostosa, diziam. Morenona de cair o queixo. O patrão vinha buscá-la todo dia num cadillac bordô. Ela ia trabalhar de salto alto, meia de seda, tailleur, blusa de tafetá, toda perfumada, penteada, de colar de pérolas, anel de brilhante e pulseira de bola.
    Minha mãe e o patrão dela iam de carro pro trabalho.
    Um dia ela chegou puta da vida dizendo que tinha sido despedida. A partir desse dia, a vida dela perdeu a graça. Desleixou, descuidou, ficou pior ainda.
    Eu tinha 15 anos e tive que cuidar de tudo sozinha. Da casa e dela. Toda hora tava de cama. Até banho eu tinha que dar. Aposentou-se por invalidez.
    Quando terminei o ginásio, fiz curso de auxiliar de enfermagem e entrei no Hospital das Clínicas. Acabei fazendo faculdade, hoje sou enfermeira-chefe.
    Minha mãe ficou encravada na cama muito tempo até que um dia amanheceu morta. Finalmente eu estava órfã.
    Dei todos os móveis do quarto dela, as roupas, e aluguei o quarto para um calouro da medicina: o Rui, 20 anos, recém-chegado à capital.
    Os pais dele ficaram felizes ao saber que ele moraria na casa de uma senhora tão distinta.
    Logo nos primeiros dias me engracei com ele. Chegou a minha vez, pensei. E vai ser com esse. Eu fazia comidinhas que ele gostava, jantava com ele, aparecia de camisola na sala, tomava banho de porta aberta, dormia de perna aberta com a porta aberta. Ele passava pelo corredor e me espiava com o rabo do olho.      No frio, eu ia ver se ele estava coberto, dava beijo na testa, na boca, abraçava, deitava junto. Eu sei agradar um homem, sem nunca ter aprendido.
    Ontem ele trouxe um amigo pra jantar.
    - A senhora é mãe do Rui? – perguntou ao me ver na sala.
    - Mãe, o cacete – respondi atordoada. Sou a mulher que dorme com ele, que faz a comida dele, que cuida da roupa dele, da casa dele.
    - Praticamente uma mãe – o cínico completou.
    - Deus me livre ser mãe do Rui. Mãe é a maior desgraça na vida de uma pessoa. É por causa das mães que tem tanta gente infeliz.
    O moço ficou assustado e pediu desculpas. Quando ele foi embora, perguntei pro Rui se ele também me via como mãe, mas ele disse que não, nunca!
    - Até porque, eu gosto muito da minha mãe – ele disse me beijando a boca com o ardor de sempre. Depois perguntou curioso: e pai, o que é um pai pra você?

Nenhum comentário:

Postar um comentário